quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Conluio das delícias

1997, sábado: ressonante (Tangerinas de Mulholland Dr.)
o cavalo desceu a rua com pressa e levantou pouca terra, corria no asfalto.os dois sentaram um do lado do outro e não se puseram a conversar. não acreditava naquela época que se falasse em despedidas. ele passou correndo, o cavalo.

p146 (Sangue de Coca-Cola)
A merda toda é esta saudade. No apartamento do 8º andar, sentado num sofá, ele que, quando a lua surgir, vai matar alguém de olhos verdes com um fuzil de mira telescópica, Tyrone Power repete alto, como se não estivesse só: - A merda toda é esta saudade.

p211 (Sangue de Coca-Cola)

É esse filho da mãe de lança-perfume que me fez abrir a torneira. Agora fico pingando Bebel. Fica pingando Bebel como uma torneira mal fechada pinga de noite, caramba! E a torneira pode abrir, eu juro que pode. Aí onde eu vou parar Santo Deus? E se eu rezar? Eu podia rezar, caramba! De noite ela rezava. Ficava ajoelhada de mãos postas rezando! Por Deus que ela parecia uma menininha que ia fazer 1º Comunhão, por Deus que parecia! Depois eu apagava a luz e ela me fazia subir na parede, caramba! (aquela língua de cobra)


o que vem embaixo se liga à Tangerinas de Mulholland Drive dezembro de 2007

Conluio das delícias

Quando essas pessoas saíram de perto foi que deu pra ver, eu vi, as pessoas iam saindo, andando pra longe e eu soube que era melhor segurar no corrimão da escada que eles andavam como se fosse carregar junto. Às vezes acontece demais isso: da pressa. Quando Analice chegou na cidade, uns meses atrás que não foram muito tempo, anos, achou tudo difícil. O bonde contornou o teatro João Caetano articulado, era isso: a poesia desceu pra barriga. Analice fugiu lá de Resende e andou toda aquela estrada de Resende até o Rio só porque, além de gostar de Emilinha Borba, não ia ficar lá e ver a filha nascer no meio da terra.
O médico olhou pra Ana e perguntou se ela ia ter o filho e ela disse que não, daí Alice se olhou no espelho e perguntou pra que é que adiantava todo o sacrifício de ser poesia, descer pra barriga e depois ficar com a sensação de que comeu uma laranja muito rápido e tá entalado, ou comeu pipoca e a casca fica presa perto da faringe. Ela não entendia, eu também não, meu Deus linspectoriano, o mundo é muito esquisito.

Analice não achou o amor no Centro do Rio, ao contrário, comia mal demais. Ela não tinha esperança que fosse achar o amor, só a Emilinha Borba de quem comprou o disco assim que deu. Trabalhava numa sapataria, às vezes errava o troco, conseguiu o trabalho rápido. Tinha uma prima do namorado que gostava dela e que morava ali perto da Gomes Freire e ela arranjou o bico na sapataria. Era bom, calçava 36 e experimentava os sapatos quando tinha tempo. Às vezes tinha muito tempo. As pessoas tinham medo, ou tinham pena, ou era mesmo gentis, porque ela estava grávida e só, e só. A barriga crescia rápida, algo ao nível de dizer que crescia explêndida. Alice vingou feito doença em velho, pensaram. Ana esperou as pessoas se apressarem atravessar a rua, entrar no bonde, entrar no teatro, comer pastel porque preferia ficar por último. Era tão mais resignada, devia tê-la conhecido só agora, nunca antes com aquele olho de que sabe antes, de anunciação. Agora ela brincava, mas antes não, lá... Nunca. Seduziu por acaso o rapaz que trabalhava com carros, consertando carros, motores de carro. Ele às vezes bebia; viu Analice escorada nas grades de ferro e pronto, e Analice arranjou um namorado.

Quando Alice pensou que ia se despir, nem tinha mais tempo. Não a exemplo da mãe, a mãe não tirava nunca a roupa. Alice tirava ou a roupa era tirada e ela não via como acontecia, ela que não via nada direito andando na calçada porque era muito míope mas não tinha uma grana pra comprar óculos. Alice pelada no quarto claro, via o rapaz entrando e achava a mecânica das entradas e saídas muito lubrificadas e redondas. Dessa vez, agora dessa vez eles me entendem, que eu levei Alice até aqui pra vê-la achando que as entradas e saídas eram redondas. Alice que queria pendurar uma âncora e se jogar da ponte, era isso meu Deus linspectoriano, ela passou por isso pra ver, só e só o ônibus aportando em Campo Mourão e ela saindo com medo das escadas, corre-mão, e ficar tão quieta de ver a primeira vez o olho verde dele. Depois é que não se vê mais nada nunca, amar é igual escorregar levemente e bater os ombros num poste porque o carro tá em movimento ainda, essas coisas não sei bem. Alice abraçou-se com os dois olhos que eram verdes dum modo que ele entrou nela e disse: agora você é minha. Então ela esperou uns minutos até que ouviu o que devia ter sempre sido o som de Emilinha Borba: os meus olhos razos d'água. Depois não quis mais ir, passou os anos e não quis mais ir, nem ver a mãe, nem saber quem era afinal o pai mecânico, nem o médico que pôs no mundo e ela nunca gostou dele. Pra que no mundo? Fazer o que dentro dele? No Centro, no João Caetano, nos dias com frio que fazia na Gamboa, tanto cheiro ruim na casa que ela corria lá fora vomitar e depois voltava pra limpar tudo bem justo. O rapaz chegava pra não dar pé, não enxergar, hoje eu sei. Vim até aqui com Alice e não deixei ela pular da ponte como quis, nem perguntar a mãe porque não pediu pro médico fazer ao contrário e matar, que lugar de poesia não era na barriga. Vieram socorrer, eu disse que era bom rezar. O seu rapaz tinha uns suspiros e Alice ia neles até chorar muito quando tinha de ir embora; back to the old house. Eu não queria chorar não, dar adeus bem lento é pra quem espera que deitar de luz acesa não seja errado.


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Sangue de Coca-Cola, Roberto Drummond, um livro favorito. Aqui.

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