domingo, 31 de agosto de 2008

Viver num mundo sem Alicia


Alicia y Benigno
Quando Benigno é mandado pela prisão, no começo do fim do filme, escreve uma carta dizendo que não quer viver num mundo sem Alicia, num lugar onde não o deixam ter a presilha dos cabelos dela.
Benigno tinha cuidado da mãe desde sempre, mas disse que ela não era inválida, ou louca, jamais! De qualquer modo, cuidava dela, lhe dava banho, fazia-lhe as unhas, maquiagem... é possível que a mãe de Benigno não fosse mesmo dependente, talvez ele tenha criado uma dependência para ela, para que ela ficasse atrelada a ele. Os quatro anos que viveu com Alicia foram os melhores da sua vida. Ele adora os dias de chuva porque era um dia de chuva quando ela, Alicia, sofreu o tal acidente de carro que a pôs num coma e, a aprtir daí, ele pôde estar com ela todo o tempo; enfermeiro.
Já Marco e Lydia... Lydia tinha a mesma fobia de cobras que a ex-mulher de Marco, é tão incrível a cena em que ela dá aquele grito e sai correndo de casa porque tem uma cobra na cozinha, então entra no carro de Marco e se esfrega com as mãos, o colo, o pescoço. Antes eles haviam conversado, ele queria uma entrevista com ela que é toureira, mas admite não entender nada de touros:
- Então que faz aqui?
- Não entendo nada de touros, mas sim de mulheres desesperadas.

Lydia está completamente antipatizada com ele, ofendida no orgulho: desesperada? Então encontra cobra na cozinha e corre de volta para o carro de Marco. Ele mata a bicha e retorna segurando a bolsa de Lydia, a leva para um hotel, ela diz que nunca mais voltará àquela casa. No hotel, a deixa no quarto, ela se senta à beira da cama e então ele está novamente lá.
- Quer que eu fique? Posso dormir no sofá, não seria a primeira vez.
- Não, tenho de aprender a ficar sozinha.

Eles haviam se conhecido naquela noite.

Marco y Lydia
Anos mais tarde, os dois estão juntos. Assistem uma apresentação do Caetano e Marco está chorando, se vira e sai. A toureira vai até ele, passa pela piscina, mil cordões, brincos chamativos, os cabelos, os cachos, orelha com flor, na noite e no vento, um nariz grande demais, perfeito. Que força tem Lydia ali! Mais que à frente da porta donde um touro vai sair. Ela passa pela piscina, enlaça a cintura de Marco pelas costas, pergunta porque ele chorou naquela noite em que caçou a cobra e ele fala da ex-mulher:
- Odeio essa mulher...
- Não a vejo há anos.
- Pior.


Marco é reporter, escritor eventualmente, eventualmente também faz as mais variadas coisas na área da escrita. A ex-mulher tinha problemas com drogas e por isso os dois viajavam muito, ele diz que os dois juntos só funcionavam quando estavam longe de Madrid, mítica. A família dela decide retê-la e eles ficam longe. Não se deviam separar as pessoas que se amam, diz. Costuma ir a lugares, apresentações de dança, músicas; o fazem chorar porque queria que ela também visse o que via e sentisse aquilo daquele espetáculo, daquele momento, daquele som, e ela não estava. Ele sempre se emocionava por isso. Depois o amor acabou.

Benigno diz a Marco que ele deve falar com Lydia, mesmo com ela estando em coma; o touro a tinha pisoteado, arrastado e agora ninguém sabia se ela ia acordar algum dia. Marco diz ao Benigno que não reconhece mais o corpo da mulher, que não consegue ajudar em nada, nem a virá-la e por conta disso se sente um inútil.
- Fale com ela. Diga isso à ela.
Mas Marco argumenta que isso é um absurdo e o outro está pegando o aparelho de pressão, o estetoscópio para examinar Alicia; ela não pode ouvir, o cérebro dela não funciona mais. Como ele poderia ter tanta certeza disso?
- A mente da mulher é um mistério, ainda mais neste estado. Tem de prestar atenção nelas, falar com elas, pensar nos pequenos detalhes... acariciá-las. Lembrar que existem, que vivem e que são importantes para nós.

Marco y Alicia
Depois Benigno se despede. Ele acha que com Alicia é mais feliz que a maioria dos casais, quer se casar com ela. A prisão é o de menos, pior é não ver Alicia e se diz capaz de qualquer coisa se não lhe derem alguma informação, qualquer coisa. Ele morava em frente à academia de dança dela, um dia, por acaso, teve a oportunidade de descobrir a sua casa e daí entrou, até no quarto dela. Antes haviam conversado e ela contou que descobrira o cinema mudo. O quarto de Alicia é burguês e doce, com quadros de balé na parede e cordões na cabeceira da cama, bolsa de ginástica Adidas. Ela está no banho, sai do banho e topa com Benigno à saída do banheiro, obviamente que fica chocada e ele diz:
- Não se assuste! Só queria te ver. Sou inofensivo.
Diz que é inofensivo, absurdo ter dito isso. Alicia atravessa a rua e para no meio dela daí acena para o Benigno. Só se pode estar calmo, sereno e abraçar a metade da rua com os carros passando quando já não se percebe certos tipos de morte, quando não se percebem certos perigos e Alicia não tem medo das coisas, nem das pessoas. Fica buscando o que tem além disso porque isso não existe. Fico contente como Alicia falou da sua descoberta, do cinema mudo e das viagens e do balé, principalmente, com Benigno, como se fosse normal dizer por aí essas coisas, e pros desconhecidos. Marco vai cruzar a antesala do teatro quando a vê e ela retribui o olhar alheia à tudo que está torto nisso.

A prisão
A prisão é o de menos, ruim é um mundo sem Alicia, um lugar onde nem se pode ter a presilha dos cabelos dela, separado e ficar assistindo algo, ouvindo algo e sem poder partilhar, ver pelo outro distante, descrever, contar pra distância, tentar reaver algo que, na verdade, já está perdido, embora exista. Quando está na cadeia, Benigno está longe de Alicia e, como Marco percebe, longe já se está preso no corpo de outra pessoa e ela não é você. Coma. Lydia precisava mais dos touros.

Um comentário:

Anônimo disse...

Fale com Ela...
Faz um tempão que vi esse filme, e
ter lido teu texto me lembrou de
várias cenas simples e tão
cativantes que eu tinha deixado o branco da memória levar. O amor e o cuidado do Benigno com a Alicia, a falta que a presilha fazia na lembrança e no toque dele. Aliás, os detalhes no fundo são os maiores atrativos dos filmes, de onde a gente pode tirar tanto significado...

Esse filme é fortíssimo. Sabe o que eu mais gosto? São as cores, a união de artes que o Almodóvar distribui nos filmes. Pode ver, a
maioria tem cenas de dança
lindíssimas, teatro, tem boa
música... Sabe que o último dele
eu ainda não vi? Já esteve na
minha mão várias vezes na
locadora, mas acabei trocando
sempre. Vou dar mais atenção na
próxima vez.

: )
Beijo, guria! Bela reconstituição do filme. Me deu vontade de ver de novo.

Já ia me esquecer de falar do título. Acho que o caso é o mesmo de "Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios". Me peguei com o filme na mão pelo título, depois é que fui ver que era do Almodóvar.

Hehehe, eu não consigo parar de falar! Mando-te um e-mail!
Beijão :)

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