domingo, 28 de outubro de 2007

Resumos imaginários da coincidência noturna anterior

mas, na verdade, será atroz o peso e belo a leveza?
o mais pesado fardo nos esmaga, nos faz dobrar sob ele, nos esmaga contra o chão. na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o peso do corpo masculino. o fardo mais pesado é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da mais intrensa realização vital. quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais ela é real e verdadeira.
(Kundera)

parece difícil transformar em texto, e realmente é. intimidades elementares só pedem silêncio pra paralisias convulsas. desse jeito, não se sabe direito como me tornei diversa, como foi que quis te procurar com as mãos e vocalizar sentidos que nunca expressei. são todas imagens que, tão aproximadas, são muito turvas: te procurar com as mãos, os dedos e as unhas num movimento tão irreconhecível que dei passos pra trás. ineficiente. se eu escrevesse a palavra, escreveria num espelho pra ter coragem de olhar pra ele, em dizeres, dizer que foi um salto do desejo; suprimir o que até hoje me pareceu proibitivo. saltando pelas sacadas, prestando
uma atenção suicida, aturdi mil beijos pelo pescoço e desenhei quadris perfeitos para encaixe; não menti, quis estar infugível contra paredes. a impressão que se tinha dali era que o querer era vindo e era seu. era eu que te acordava, que achava hora pra parar os seus sonhos, que te procurava com as mãos, que te engoli nos seus sonos, que fiz cercos de língua e realidade como se fosse cafeína.
e o que mais havia de ser? eu bocejava e sentia os seus dedos em mim. eu reclamava mais cinco minutos e só o que tinha era o preenchimento de todos os vazios universais pelos teus dedos, pelos meus dedos, pela minha vontade de me esconder, pelo meu excesso de pudores. parece extremo mas, digo, é urgente que se saiba que você circunscreveu meus seios e que você me ladeou e que houve essa posse e que fui pelos cabelos puxados. violentamente estive devota.
simplesmente quis devassar, singelamente forçada, frondosamente aberta. eu quis joelhos, quis ponta dos pés, quis beber. transformar em texto parece fácil quando se você soubesse nas exigências que... podia mesmo ser todas as sonolências, se eu dormir, se você me morde, se eu te chupo; são percepções acetinadas do não comparecimento. parece corrente: li teu cartão pela vigésima vez. li teu livro. foi pela insistência da sua demora que me toquei.

sábado, 27 de outubro de 2007

Em partes dispostas: num tempo só

não tenho escrito... nada, nada não. acabei de pegar um papel e escrevi assim:

Afrânio vivia numa torre torta
mas nunca chegou perto Afrânio
vivia numa torre torta mas
nunca chegou perto Afrânio vivia
numa torre torta mas nunca
chegou perto Afrânio vivia numa torre
morta mas nunca chegou
perto Afrânio

eu não sei o que isso significa. só sei que acordei às 6 e trinta da manhã hoje e sabe quem me sabe bem o que é isso. sabe? seis e 30! essa semana foi chuva demais no Rio, muito cinza e eu não sei lidar com isso. não sou adaptada pra dias frios, passei a quinta feira inteira com a bota encharcada porque a minha bota é um enfeite, entra água. fiquei presa no Campo de Sant'ana e esse foi o acontecimento mais absurdo da semana depois das três horas parada no trânsito tentando chegar na Central. tu-do parado, foi um horror. e justo num dia em que eu estava felicíssima indo ler as minhas fontes documentais no Arquivo Nacional; estava com muitos planos, muito satisfeita por ter acordado cedo e estar na ponte meio dormindo (adoro o estágio de meio dormindo; é o melhor momento pra maioria das coisas. coincidentemente estou meio dormindo agora; dentre as coisas boas, não está escrever porque fica mal escrito, tomado de erro - uma duas...) ouvindo Radiohead (feel it.....!). isso foi na quarta, eu estava de sapatilha aberta mas..eu dizia do Campo de Sant'ana, pois bem; entrei no Campo assim que saltei do ônibus (três horas de engarrafamento) e, hipoglicemia, pensei em ir na Senhor dos Passos comer. mas a chuva alagou as saídas do camo e ficamos lá por uns 10 minutos na enchurrada eu, as cotias e um pavão agachado no laguinho. uma porcaria a câmera estar sem bateria na hora porque seriam lindas fotos, queria mostrá-las, mostrar-vos.
então, estive no Archivo Nacional e comi sanduíches com Coca-Cola morna - sem geladeira para consulentes - e li uma penca de livros cartoriais. Fotografei no segundo dia uma série de cartas de alforria (1840-1871) mas ficou um horror, acabei de ver; impossibilidade parcial. ainda preciso analisar o que extraí disso tudo. sei que fiquei muito chateada em alguns momentos com uma série de coisas; a principal delas era: por que sou uma retardada leve?
em casa agora, pós-monograficamente-orientada, livrada de livros, medicada e com sono - ainda houve seminário sobre teatro no Brasil 1940-60; expressamente: Nelson Rodrigues- vou me dar algum descanso e todo descaso, mais chá de acalmomila. depois escrevi umas outras linhas mas...bestas também. aqui está, é isso, postei e parece um blog.


à pé molha-da samba frio rio
rio sem motivo - absolutamente que motivo tem?
restinga das palavras lidas (ilíadas) sí-la-bas
que de sí-ludi nos ar-co-cine iris
arco sim na lapa
sou cantada sem sal bonita e depois rápido
moça, mulher, comida entre a cama e o espelho
bo-ni-ta
pra chorar no corpo de-delírio
assíndeto

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Postagem travessia para moças perplexas

postagem apagada, postagem de volta, postagem de merda com título novo lindamente rebatizado.

cachecol molhado, bota molhada, não era das meninas mais impermeáveis; sempre tudo molhava até as revistas e os livros nas ocasiões mais diversas, a principal delas era, sem problemas com a certeza, quando chovia demais e entrava água no quarto (rachadura na parede). inundação. chorar fazia pouco; se proclamava a vontade e ficava sempre sendo só vontade porque não passava jamais da portinha do olho. ela dizia que tinha cadeado praquilo, pra represar, e represou sem querer de tanto não poder se fluviar.

desse jeito, então, tinha-se feito aquele redor.

se não molha por dentro o trasbordamento vem de fora, por infiltrações, ou cano estourado ou caos poético bíblico. sorte era que nadava bem, não que tivesse treinado, nunca tinha tido asma, mas aprendera numa bacia de alumínio cheia e fresca, entre a terra muito batida e a sombra das folhas de bananeira - aliás, acreditava piamente que as folhas de bananeira, se secas e trançadas, poderiam se transformar em jangada. perdia ou ganhava dias de sol no tanque velho (hoje, ao redor desse tanque, colocaram cacos de azulejo, um de cada cor no concreto) daí lavava as folhas com sabão e punha pra secar feito fosse roupa, com pregador e tudo. se perguntada sobre as aprontações, respondia pra preta dos cuidados que queria secar as folhas e fazer uma jangada das tranças. preta não só dos cuidados que evitam de cair ou se perder, mas das imaginações. ela ensinou que não se ia a escola, se fazia percurso, e que se pode(ia) entrar nos matos pra tomar um mel que dava em plantinhas, também tinha aquele melão-de-são francisco. eram épocas moderadamente úmidas, humildemente frescas, tinha também abacate amassado com limão, mas ele ainda não era expresso, mas ela ainda não tinha cadeado pra represar a água de dentro, se soubesse, se eu fosse falar com ela agora, ela ia me dizer preu jogar fora, dar com pedaço de pau, pra gente enfrentar os mosquitos e a perna ralada, pra gente dar nome pros cachorros desconhecidos dos vizinhos desconhecidos e sonhar com que casa morar (o sobrado branco tá lá ainda, igualzinho!), e ver a galinha Knorr colocando ovo, biscoito de maisena enfeitado com garfo de 4 dentes e todo etecétera. se ela me visse...se eu pudesse falar de ouvir com ela agora, ela ia dizer preu desaguar e escrever de vez em sempre. eu ia dizer que todo segredo deve ser mantido do olho pra dentro, que isso é falha que a gente aprende no eito dos mal-amar... cachecol molhado, bota encharcada, jaqueta que não cobre os braços, ponto de ônibus e daí é noite. que'me dera agora te'minha jangada pra cantar.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Verkitschen: te digo se delírios

via só os números escritos na coxa, já até esquecia que não apagava, seus números. as outras, oito pares de olhos observatórios, viam e se encheram de raiva: números escritos? e quem se importa? despertou inveja de toda uma cidade que mal sabia ler, quanto mais enveredar. chegava bem na praça, atrapalhava o jogo de dama dos cavalheiros velhinhos, levantava a saia e saía no orgulho da exibição de números estruturados. pitágoras! a mãe fez nada, o pai dizia que era caso pra pé de mesa. pé de mesa? era só a hóstia subir pra saia ir junto. cidade despovoada, primo casava com primo, é sempre choque. até me dói a agonia - tentar lembrar o passado d'ela verkitschen, não lembro. garantiram que era o calor que fazia e ela realmente não se fazia de rogada nem no açougue, se abanava, se ventava amplamente e era estampa pra tudo quanto era lado, e era surda de nunca ouvir adeus.
mas é que era esperado só pra quem ouve a história, que uma coisa só é que ia suceder. e nem era um rapaz dos mais bonitos, nem rico (pobre de homilia), nem acendia vela, pulava janela bem à beça. contava que vinha encomendar copo. ela correu o que pode e a laringe quase estrangulou o coração de pânico. dia hora, escreveu na coxa, minutos pra ele aparecer no balcão d'ela atender. ele: moça... a cena, por que repetida, foi exatamente a mesma. segurou nas bainhas pelas pregas e deu bom dia pros estrangulamentos. depois não aconteceu nada, nada com o resto da vila, silêncio até nos que sempre diziam que um dia (!um dia) iam ver o mar. sacou a caneta: -1, em baixo, zero - e - ontem e você hoje se é fim dos pressentimentos tristes. poucos sabiam ler que dirá dar telha pra quem escrevia coisa na mão, no pescoço, nem o término do escândalo das calcinhas expostas em paralelepípedos públicos preocupava; vida é pra cada um achar que está. e ficaram tanto tempo lá, ele parado escolhendo copo e ela com a cabeça enfiada entre os pés, se calculando nas coisas do dizer, que ficou tarde e eu vim embora. agora conto a história, sem saber o fim que vai ter de aflitos.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Drummond: a morte do leiteiro


originalmente publicado em Obvious
estou ainda às voltas com o TCC, peço desculpa pelo silêncio. mas,
com diria o Collor, não me deixem só!


Na minha época de escola, tive a sorte grande de esbarrar com materiais didáticos fantásticos. Fantásticos ainda que franciscanamente simples. O meu favorito era uma fita K7 que acompanhava um dos nossos livros de literatura. Numa dessas feiras de estudantes, feira de letras ou de palavras (não lembro o nome...) eu resolvi que íamos apresentar poemas Modernistas - sim, resolvi; eu acreditava ser o Napoleão Bonaparte do meu grupo de amigas, um osso! Acabei por me atracar noites e noites com os cassetes ouvindo poemas recitados do Mário de Andrade. Meu favorito era "Ode ao burguês" (como todo bom latino-americano, eu tive lá meus momentos de petit comunista) que eu acabaria recitando inúmeras vezes pelos corredores do colégio e pelos cômodos da casa, sob aprovação amorosa do meu pai - o socialista mais capitalista que conheço. Passado esse furor vermelho e passada a feira de Letras ou Palavras (?) pude me aventurar com mais calma nos outros poemas: Manoel Bandeira, Gonçalves Dias, Euclides da Cunha e por aí foi. Hoje a verdade é que muita coisa já está desbotada na minha cabeça, não sou genial a esse ponto: pra cada informação nova, a outra mais desusada cai lá longe. Mas ainda me parece meio fresco, lembro de cor diversos trechos e fico sempre estranhamente emocionada, instigada. Me lembra um país que eu nunca vi e de que não sinto saudades, mas que me atrai como um impulso masoquista... Bem, é este Drummond. Encontrei aqui perdido na HD e resolvi trazer pra cá. Espero que gostem. Se chama "Morte do Leiteiro".



Há pouco leite no país
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.

Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas,
seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro.
morador na Rua Namur,
empregado no entreposto
Com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma pequena mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este entrou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada.
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.


terça-feira, 9 de outubro de 2007

(outro) Pequeno ensaio textual: a letargia da miséria

Há também essa chave; a letargia da miséria. Não acho que seja possível refletir essas coisas que escrevo sem que eu passe e pare antes nisso, nessa situação. Onde eu esbarro e acaba me impedindo de descrever expressão de uma forma certa e compreensível é nessa complicação que é expôr o íntimo de forma realmente íntima. Explico; a letargia da miséria é uma concretude na minha vida, permeia a minha história e a história da minha família, dos meus conhecidos e dos meus desconhecidos, é a minha maior negação e o que corta de orelha à orelha as palavras que escrevo.
Essa tal letargia é um ataque crônico de paralisia psicológica, nasce de dúzias de privações, de centenas de desilusões, da fome que pode durar 1 hora por dia, duas, uma semana ou meia vida.
Ao dicionário:


do Lat. lethargia
s. f., estado mórbido em que as funções da vida estão atenuadas por forma tal que parece estarem suspensas;
fig., sono profundo;
estado de apatia moral ou intelectual;
estado de insensibilidade característico do chamado transe mediúnico.

Leva as pessoas e/ou personagens a atitudes que costumam ser condenadas como a submissão a alguém ou a alguma situação. Ou melhor, essa letargia não o leva a lugar nenhum mas o coloca numa posição (ou ele se considera assim) em que é sempre simplesmente levado pelas circunstancias que ele acredita serem inescapáveis. É o vento que sopra aos ouvidos, mensagens tanto de esquizofrenia que atraem para a queda.

Ela queria os agrados em formato de descontrole, queria que eles desabassem logo e pensou em de-repentes, pensou num vento que sopra sempre nos ouvidos e que levam, arrastam. Ela era magra, sempre fora muito magra e com uma barriga de criança faminta. Magra e levável

noutro:

escuro e beijo, meu rosto todo e uma boca que não seria mais estranha depois - digo a verdade de que eu nunca gostei. contornava a cama e eu pensando no quanto você era disforme, ridículo de preservativo, mas resignado ao brutal. andava tão triste que consegui durante dois segundos não pensar o que tava fazendo ali; dois segundos e não me concentrei mais em estar por ser inevitavelmente levada pelo vento forte que sempre fez.

Mas eu dizia que esta era uma chave íntima. Na postagem Visão do nosso paraíso foi quando eu expus, ainda sem saber o que era, a situação da apatia; eu falava sobre a minha família e dum relance da vida daquelas pessoas no interior da Bahia. A luz entra pelas frestas das paredes das casas feitas de madeira e barro e dá pra ver a poeira voando, as crianças brincam de ficar olhando a poeira no ar porque são crianças, estão indiferentes em imaginações, a maioria não vê que estão no início de uma roda parada. Isabella Kantek abordou um instante como esse, mas entre a dúvida da ingenuidade e o conformismo do cansaço; triste.

O avô espalhou pelo chão da sala discos de memória e afeto. Regressar à infância tem gosto de sertão. Boca da terra vermelha.
A menina arranhou com olhos de agulha e escutou com o coração da idade imatura. No bafejo da tarde a vespa impaciente carrega no cerne, dor.
A cadeira de balanço acolhe os anos que trazem arrependimento e apaziguam cantigas de um tempo que teme esquecer.

Quando eu escrevi aquilo eu não tinha claro o palpite de que eu também já tinha sido aquelas crianças, hoje, exatamente hoje, eu tenho minhas dúvidas de que não faça mais parte dos não-giros da roda. Mas, continuando.
Acredito no aleijamento que a miséria causa, que a pobreza causa. Alguns colocam prótese, mas, não importa quanto tempo passe ou quanto a ida melhore, está lá o aleijão. Vimos aquela menina da Gamboa que arranjara um amante pra fugir do cheiro de peão do pai e da fome (não consigo imaginar o que acontecia com o dinheiro do trabalho dela.. talvez fosse muito pouco, talvez o pai usasse pra beber, não fica claro); além desse amante (um moço pouco curvado) e da sopa em pó que ele lhe levava, há nela essa obsessão pelo fedor do pai que não lhe sai da memória (ela acha que também fede. É tudo fruto duma mesma coisa, duma mesma época; ela não conseguiu construir uma prótese ainda que as lembranças tenham ficado meio desbotadas.

às vezes eu acho que esse cheiro não vai sair de mim e do cabelo. Isso me espanta em você, e acendeu um cigarro, foi pra junto da janela exatamente quando passou um Maverik vermelho escrito vendo raridade. Te espanta porque não precisou comer os ovos empanados do boteco, o moço me dava até um refresco de graça, junto com ovo... ovo cozido empanado, ovo à milanesa e um refresco bem ralo de maracujá. Só queria tirar o cheiro de peão de obra.

(Era um pequeno ensaio, não? peço desculpas pelo alongamento), a questão ficou marcada e clara nos diálogos de Abelardo e Francine onde ela dá nome à coisa e chama de letargia da miséria. Francine talvez seja o enfrentamento; não é normal que um miserável se diga assim.

os meus irmãos sempre me beijaram, mas na boca, sem língua. um tio na cama dos meus pais cravou o dente no meu pescoço e fui a lucy de bram stocker. ele me tocou fogo até que o vento custou a bater pra levar o que ficou de cinza. noutra um tarado, um judeu tarado. um médico judeu tarado. um clínico com um carro prata, me deu um beijo na coxa e pediu telefones. os professores chupei todos até descobrir que não existiam presentes, só há venda.
e os padres?
me puseram no púlpito pra sedução letárgica da miséria.

A letargia da miséria provoca o apego ao inútil, ao mesquinho, a si; a vida de um miserável é regida por instinto? Geralmente penso que sim. Um miserável pensa em comer amanhã, em viver amores imprescindíveis, perpetuar sua morbidez. Simplesmente existir, simplesmente deitar e acabar de morrer descansadamente.
--
referenciais:
Dicionário Priberam
Clarisse Lispector "A hora da Estrela"
Milan Kundera "A insustentável leveza do ser"
Abril Despedaçado, de Walter Salles

colaborou:
Rafael Santana - Aletômetro


sábado, 6 de outubro de 2007

Pequeno ensaio textual: audição

O ouvido é para mim, é para os meus delírios lêtricos, um personagem, um avatar, que algumas vezes aparece nesses textos e que é bastante categórico, mesmo nos seus aparecimentos e reaparecimentos quase imperceptíveis, para a compreensão das linhas.
Eu estou chamando de personagem porque não sei se chamar de "expressão" parece verdade, ou conceito; não, não. Com certeza "ouvido" aparece nos escritos muitas vezes como o órgão mesmo, mas em outras é preciso ter um pouco mais de atenção para perceber que não se trata só disso, da parte do corpo. O ouvido é um lugar onde se podem revelar segredos, revelar pela fala ou pela sonoridade da escolha das palavras; tem uma estrutura completamente confessional. Mas mais do que isso, é também um tempo, um plano: a ocasião exata onde aquele ou aqueles segredos podem/devem ser pronunciados ou confessos. São essas coisas íntimas que trancamos em algum lugar e julgamos que só podem ser ditas num momento específico para uma pessoa ou platéia específicas.
a gente fica esperando a vida inteira pra sentar do lado daquele ouvido e dizer, aquele ouvido que só tá ali pra ouvir mesmo, que acha até que gosta de ficar e ri, chora
Isso não exclui o engano; às vezes damos a saber algo para o ouvido errado (num momento em que as histórias ainda não tinham as palavras certas para contar) o que geralmente causaria uma frustração do desperdício, do engano. Também há a ocasião onde o interlocutor nunca se faz presente para ser um ouvido; está interessado em cheiros, em dedos passando, pouco se importa com qualquer confissão, qualquer dado íntimo que vá além disso.
lembro de você (da voz não, nem no ouvido)
O ouvido é uma entidade independente porque ele é o outro, pode até ser mais de um outro, várias pessoas, pode ser você percebendo os próprios ruídos.
tratando de misturar tantas letras e tempos de nomes ou adjetivos sinais que nunca combinaram bem, falando como se falasse aqui baixo à meio ouvido de distancia sem que ninguém veja
A questão principal é o segredo contado para o ouvido; ou às vezes nem bem segredo, mas algo surpreendente que não tinha sido revelado até então, talvez um algo que fosse melhor ter continuado sem som.
eu tinha dois olhos encantados
que morreram caindo lá de cima
fazendo um barulho tão horrível
que nenhum ouvido quis ouvir
Eu acredito que por vezes misture o sentido de ouvir com o sentido de ver. Talvez por achar que os sons revelam mais, que formem imagens mais ajustadas à abstração do que ao factível; fechar os olhos pra ver, fechar em si, concentrar-se para perceber algo a partir do que só está criado aqui dentro.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Que arde e é vento

Desceu os degraus, de dois, três em três, fazia as paredes de corrimão, cinzas de correr mão e correu voou mesmo e bateu os tornozelos incrivelmente apressados; parou ou pousou na frente do balcão, pediu caneta pro porteiro, desfolegou e mostrou os dentes (sempre me encanta quando faz isso, e usando vestido...!) daí foi na mão mesmo que escreveu: 8 5 2 – 2 4 8 – 9 5 3

(718 - 404 – 1374 telefone público em frente ao salão da Carmem)
"Estou tentando descrevê-lo com a minha foto na mão. Eu sei. Não ... escuta, somos muito parecidos", insistiu Eva. "O quê? Você não está me escutando? Tem um auto-falante fantasiado de alter ego dizendo que você devia agir de forma mais natural?"

Eu queria poder dizer o nome dela que passou as fichas duma mão pra outra, deu bom dia imaginário pra moça da fila, olhou o retrato e se convenceu que nem tão distante se podia enxergar a grandeza da sua precipitação hílare (ainda que com suas suspeitas de trágica). Desocupavam o telefone e se afastavam, ela se tropeçou, agarrou o fone vermelho, telerj, telerj e girou o disco com 8 5 2 – 2 4 8 – 9 5 3 1

Ia dizer no futuro que ensaiara o tom da fala em casa, sala, sozinha, feito peça pro espelho vestindo só calcinha (e calcinha azul de algodão, como deve ser). Disse pra si na unidade lateral da certeza de que sim, cativara o rapaz e o homem. O que disse foi segredo, é só o que importa, mas é segredo. Pedia sobre os desvarios típicos da idade, queria passar suas bermudas, usar seus sabonetes, beijar no escuro a sua idade publicamente respeitosa. Pendurou o fone vermelho da telerj no lugar e voltou correndo ou voando, de pé meio descalço e tudo (e usando vestido...!). Quem olhava rápido vendendo alho roxo, ou atravessando a rua ia achar invariavelmente que ela tinha encontrado um palito da Kibon premiado. Mas eu sabia, eu tive inveja, quis ela pra mim ... até que ela veio.


--
trecho destacado, de Isabella Kantek
(com toda minha admiração)

terça-feira, 2 de outubro de 2007

SAC Limão Expresso: estaremos escrevendo

Contundente é a alforria de Severina Crioula datada de 1850. Segundo o senhor, esta “ha muito tempo que goza de sua liberdade debaixo de minha tutela”, recebe então a carta com a condição de prestar obediência a seu antigo proprietário “quer seja conservando-se nesta ou em outra qualquer parte que eu determinar, ate que fique habilitada para poder tratar de si (...) , a de Juliana Crioula estipula em sua condição que esta “deve residir a mais de 1 légua do senhor por causa dos seus defeitos”. Já a carta de Luiza Conga, de 1851, tem como “expressa condição, que a escrava nunca mais apareça na casa do senhor”, o que instiga é o motivo: “porque a escrava vai casar com Bernardo Dias de Lima”.
Caríssimos (já disse que me sinto S. Paulo toda vez que digo "caríssimos"?)
Venho por meio desta estar me desculpando pelas postagens chatíssimas, enfadonhíssimas dos últimos dias - que acabou enveredando por uma pequena fase preto&branco pseudo-ruim. Não tenho como me explicar; isso aqui é ruim mesmo. Se por algum tempo eu tive ilusões de que não fosse, elas estão meio em crise existencial. De qualquer sorte (ou azar), como alguns sabem e outros não, estarei escrevendo minha monografia em História (ou TCC, como você chamar aí na sua casa) nesses próximos dois meses e não tenho andado com a cabeça mais refrescada para escrever algo que faça, minimamente, sentido. Não estou dizendo que vou me ausentar, pode ser que eu escreva ainda todos os dias, mas só vou estar escrevendo essas coisas rarefeitas; "correndo atrás do rabo". Quero dizer, nada especial.
Bom, agora estarei precisando ir voltar a estar lendo minhas cartas de alforria. Faltam ainda alguns milheiros pra eu começar a terminar minha listagem de casos instigantes envolvendo senhores e escravos no Império do Brazil...
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