sábado, 6 de outubro de 2007

Pequeno ensaio textual: audição

O ouvido é para mim, é para os meus delírios lêtricos, um personagem, um avatar, que algumas vezes aparece nesses textos e que é bastante categórico, mesmo nos seus aparecimentos e reaparecimentos quase imperceptíveis, para a compreensão das linhas.
Eu estou chamando de personagem porque não sei se chamar de "expressão" parece verdade, ou conceito; não, não. Com certeza "ouvido" aparece nos escritos muitas vezes como o órgão mesmo, mas em outras é preciso ter um pouco mais de atenção para perceber que não se trata só disso, da parte do corpo. O ouvido é um lugar onde se podem revelar segredos, revelar pela fala ou pela sonoridade da escolha das palavras; tem uma estrutura completamente confessional. Mas mais do que isso, é também um tempo, um plano: a ocasião exata onde aquele ou aqueles segredos podem/devem ser pronunciados ou confessos. São essas coisas íntimas que trancamos em algum lugar e julgamos que só podem ser ditas num momento específico para uma pessoa ou platéia específicas.
a gente fica esperando a vida inteira pra sentar do lado daquele ouvido e dizer, aquele ouvido que só tá ali pra ouvir mesmo, que acha até que gosta de ficar e ri, chora
Isso não exclui o engano; às vezes damos a saber algo para o ouvido errado (num momento em que as histórias ainda não tinham as palavras certas para contar) o que geralmente causaria uma frustração do desperdício, do engano. Também há a ocasião onde o interlocutor nunca se faz presente para ser um ouvido; está interessado em cheiros, em dedos passando, pouco se importa com qualquer confissão, qualquer dado íntimo que vá além disso.
lembro de você (da voz não, nem no ouvido)
O ouvido é uma entidade independente porque ele é o outro, pode até ser mais de um outro, várias pessoas, pode ser você percebendo os próprios ruídos.
tratando de misturar tantas letras e tempos de nomes ou adjetivos sinais que nunca combinaram bem, falando como se falasse aqui baixo à meio ouvido de distancia sem que ninguém veja
A questão principal é o segredo contado para o ouvido; ou às vezes nem bem segredo, mas algo surpreendente que não tinha sido revelado até então, talvez um algo que fosse melhor ter continuado sem som.
eu tinha dois olhos encantados
que morreram caindo lá de cima
fazendo um barulho tão horrível
que nenhum ouvido quis ouvir
Eu acredito que por vezes misture o sentido de ouvir com o sentido de ver. Talvez por achar que os sons revelam mais, que formem imagens mais ajustadas à abstração do que ao factível; fechar os olhos pra ver, fechar em si, concentrar-se para perceber algo a partir do que só está criado aqui dentro.

5 comentários:

Anônimo disse...

"um algo que fosse melhor ter continuado sem som."

é engraçado ver a priscilla, tão amiga no msn e aqui tão escritora. é engraçado ver que "conselhos" e opiniões pessoais se transformam em arte, literatura, textos reflexivos, sólidos, bem elaborados e lindos.


Beijos!

Anônimo disse...

Sinestesia. Que texto lindo!
A Estela descobriu - acho que foi o pai que ensinou - a diversão que é chegar ao pé do ouvido e suspirar palavras ou um som qualquer ... passamos horas nessa brincadeira.

Eu já estava ficando ansiosa, você nos deixou sem texto por alguns dias. Foram breves, é verdade, mas para quem é angustiada parecia que nunca ia chegar.

Acho que você ia gostar de ler sobre o trabalho do Émile Benveniste. É maravilhoso e eu não consegui deixar de pensar nele enquanto lia o seu ensaio. (tem muita gente escrevendo coisas que me lembram ele - sincronicidade?) "Google him".

Bruno Figueiredo disse...

um dia vou ter paciencia pra parar em frente ao PC e fazer tantos textos quanto você...

metira, vou nada!

beijos!

Anônimo disse...

Ainda tem gente tao insensivel que diz: Nao entendi nadica do que vc escreveu. Mas tudo depende de quem a gente tb gosta, ou, nao. Acho seus textos muito expressivos de uma forma realista e, se eu tivesse que dar um titulo ao que escreve sEria: "À PROCURA DA PROPRIA COISA".
Tenho te visitado sempre. Adoro mesmo seus textos.
Paz

rafael disse...

"O ouvido é um lugar onde se podem revelar segredos, revelar pela fala ou pela sonoridade da escolha das palavras; tem uma estrutura completamente confessional."

Estava eu pensando o ouvido como o orgão dos sentidos que menos nos pertence, pois não podemos não querer ouvir.

Achei lindo você ter refletido pelo viés do ouvido como intimidade. Lindo demais! "o ouvido como confidente".

Puxa, não somente nos dirigimos ao ouvido de quem confiamos como também entregamos nossos ouvidos como sinal de fidelidade. (mesmo que seja uma fidelidade momentânea)

E nada mais sexy do que um papo ao pé do ouvido, rs

Adoro ouvir com meus olhos as tuas palavras aqui no Limão e em todos os lugares em que me tem sido possível entregar meus sentidos (ainda não todos) a você.

bjus

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