sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Drummond: a morte do leiteiro


originalmente publicado em Obvious
estou ainda às voltas com o TCC, peço desculpa pelo silêncio. mas,
com diria o Collor, não me deixem só!


Na minha época de escola, tive a sorte grande de esbarrar com materiais didáticos fantásticos. Fantásticos ainda que franciscanamente simples. O meu favorito era uma fita K7 que acompanhava um dos nossos livros de literatura. Numa dessas feiras de estudantes, feira de letras ou de palavras (não lembro o nome...) eu resolvi que íamos apresentar poemas Modernistas - sim, resolvi; eu acreditava ser o Napoleão Bonaparte do meu grupo de amigas, um osso! Acabei por me atracar noites e noites com os cassetes ouvindo poemas recitados do Mário de Andrade. Meu favorito era "Ode ao burguês" (como todo bom latino-americano, eu tive lá meus momentos de petit comunista) que eu acabaria recitando inúmeras vezes pelos corredores do colégio e pelos cômodos da casa, sob aprovação amorosa do meu pai - o socialista mais capitalista que conheço. Passado esse furor vermelho e passada a feira de Letras ou Palavras (?) pude me aventurar com mais calma nos outros poemas: Manoel Bandeira, Gonçalves Dias, Euclides da Cunha e por aí foi. Hoje a verdade é que muita coisa já está desbotada na minha cabeça, não sou genial a esse ponto: pra cada informação nova, a outra mais desusada cai lá longe. Mas ainda me parece meio fresco, lembro de cor diversos trechos e fico sempre estranhamente emocionada, instigada. Me lembra um país que eu nunca vi e de que não sinto saudades, mas que me atrai como um impulso masoquista... Bem, é este Drummond. Encontrei aqui perdido na HD e resolvi trazer pra cá. Espero que gostem. Se chama "Morte do Leiteiro".



Há pouco leite no país
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.

Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas,
seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro.
morador na Rua Namur,
empregado no entreposto
Com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma pequena mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este entrou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada.
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.


3 comentários:

Anônimo disse...

"Ode ao burguês" (como todo bom latino-americano, eu tive lá meus momentos de petit comunista)

IDEM IDEM IDEM!

E no meu caso, minha vontade era recitar o poema para um tio meu aí... rsrs

Adorei a postagem, essa outra Prill.
Eu lembro desse artigo no Obvious, crê?

Cris Martins disse...

Uma passadinha pra saber que não estás só.
Bjo :)

Ricardo Rayol disse...

Está explicado sua força nas letras.

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