terça-feira, 9 de outubro de 2007

(outro) Pequeno ensaio textual: a letargia da miséria

Há também essa chave; a letargia da miséria. Não acho que seja possível refletir essas coisas que escrevo sem que eu passe e pare antes nisso, nessa situação. Onde eu esbarro e acaba me impedindo de descrever expressão de uma forma certa e compreensível é nessa complicação que é expôr o íntimo de forma realmente íntima. Explico; a letargia da miséria é uma concretude na minha vida, permeia a minha história e a história da minha família, dos meus conhecidos e dos meus desconhecidos, é a minha maior negação e o que corta de orelha à orelha as palavras que escrevo.
Essa tal letargia é um ataque crônico de paralisia psicológica, nasce de dúzias de privações, de centenas de desilusões, da fome que pode durar 1 hora por dia, duas, uma semana ou meia vida.
Ao dicionário:


do Lat. lethargia
s. f., estado mórbido em que as funções da vida estão atenuadas por forma tal que parece estarem suspensas;
fig., sono profundo;
estado de apatia moral ou intelectual;
estado de insensibilidade característico do chamado transe mediúnico.

Leva as pessoas e/ou personagens a atitudes que costumam ser condenadas como a submissão a alguém ou a alguma situação. Ou melhor, essa letargia não o leva a lugar nenhum mas o coloca numa posição (ou ele se considera assim) em que é sempre simplesmente levado pelas circunstancias que ele acredita serem inescapáveis. É o vento que sopra aos ouvidos, mensagens tanto de esquizofrenia que atraem para a queda.

Ela queria os agrados em formato de descontrole, queria que eles desabassem logo e pensou em de-repentes, pensou num vento que sopra sempre nos ouvidos e que levam, arrastam. Ela era magra, sempre fora muito magra e com uma barriga de criança faminta. Magra e levável

noutro:

escuro e beijo, meu rosto todo e uma boca que não seria mais estranha depois - digo a verdade de que eu nunca gostei. contornava a cama e eu pensando no quanto você era disforme, ridículo de preservativo, mas resignado ao brutal. andava tão triste que consegui durante dois segundos não pensar o que tava fazendo ali; dois segundos e não me concentrei mais em estar por ser inevitavelmente levada pelo vento forte que sempre fez.

Mas eu dizia que esta era uma chave íntima. Na postagem Visão do nosso paraíso foi quando eu expus, ainda sem saber o que era, a situação da apatia; eu falava sobre a minha família e dum relance da vida daquelas pessoas no interior da Bahia. A luz entra pelas frestas das paredes das casas feitas de madeira e barro e dá pra ver a poeira voando, as crianças brincam de ficar olhando a poeira no ar porque são crianças, estão indiferentes em imaginações, a maioria não vê que estão no início de uma roda parada. Isabella Kantek abordou um instante como esse, mas entre a dúvida da ingenuidade e o conformismo do cansaço; triste.

O avô espalhou pelo chão da sala discos de memória e afeto. Regressar à infância tem gosto de sertão. Boca da terra vermelha.
A menina arranhou com olhos de agulha e escutou com o coração da idade imatura. No bafejo da tarde a vespa impaciente carrega no cerne, dor.
A cadeira de balanço acolhe os anos que trazem arrependimento e apaziguam cantigas de um tempo que teme esquecer.

Quando eu escrevi aquilo eu não tinha claro o palpite de que eu também já tinha sido aquelas crianças, hoje, exatamente hoje, eu tenho minhas dúvidas de que não faça mais parte dos não-giros da roda. Mas, continuando.
Acredito no aleijamento que a miséria causa, que a pobreza causa. Alguns colocam prótese, mas, não importa quanto tempo passe ou quanto a ida melhore, está lá o aleijão. Vimos aquela menina da Gamboa que arranjara um amante pra fugir do cheiro de peão do pai e da fome (não consigo imaginar o que acontecia com o dinheiro do trabalho dela.. talvez fosse muito pouco, talvez o pai usasse pra beber, não fica claro); além desse amante (um moço pouco curvado) e da sopa em pó que ele lhe levava, há nela essa obsessão pelo fedor do pai que não lhe sai da memória (ela acha que também fede. É tudo fruto duma mesma coisa, duma mesma época; ela não conseguiu construir uma prótese ainda que as lembranças tenham ficado meio desbotadas.

às vezes eu acho que esse cheiro não vai sair de mim e do cabelo. Isso me espanta em você, e acendeu um cigarro, foi pra junto da janela exatamente quando passou um Maverik vermelho escrito vendo raridade. Te espanta porque não precisou comer os ovos empanados do boteco, o moço me dava até um refresco de graça, junto com ovo... ovo cozido empanado, ovo à milanesa e um refresco bem ralo de maracujá. Só queria tirar o cheiro de peão de obra.

(Era um pequeno ensaio, não? peço desculpas pelo alongamento), a questão ficou marcada e clara nos diálogos de Abelardo e Francine onde ela dá nome à coisa e chama de letargia da miséria. Francine talvez seja o enfrentamento; não é normal que um miserável se diga assim.

os meus irmãos sempre me beijaram, mas na boca, sem língua. um tio na cama dos meus pais cravou o dente no meu pescoço e fui a lucy de bram stocker. ele me tocou fogo até que o vento custou a bater pra levar o que ficou de cinza. noutra um tarado, um judeu tarado. um médico judeu tarado. um clínico com um carro prata, me deu um beijo na coxa e pediu telefones. os professores chupei todos até descobrir que não existiam presentes, só há venda.
e os padres?
me puseram no púlpito pra sedução letárgica da miséria.

A letargia da miséria provoca o apego ao inútil, ao mesquinho, a si; a vida de um miserável é regida por instinto? Geralmente penso que sim. Um miserável pensa em comer amanhã, em viver amores imprescindíveis, perpetuar sua morbidez. Simplesmente existir, simplesmente deitar e acabar de morrer descansadamente.
--
referenciais:
Dicionário Priberam
Clarisse Lispector "A hora da Estrela"
Milan Kundera "A insustentável leveza do ser"
Abril Despedaçado, de Walter Salles

colaborou:
Rafael Santana - Aletômetro


4 comentários:

Anônimo disse...

Muito pertinente. Mas ainda estou refletindo, pode? A propósito, hoje tive um dia letárgico, estranho...como se a terra estivesse me sugando para dentro. Pressão atmosférica?

Clap, clap, clap! Gostei muito do ensaio. Beijo.

rafael disse...

Pri
Hoje não irei comentar;
apenas te contemplar.
bjus

Anônimo disse...

Mulher! Cadê você???

Ricardo Rayol disse...

letargia, apatia... em apática situação estou... meio sem inspiração.. lendo aqui vejo que preciso me mover..

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