sexta-feira, 4 de junho de 2010

Esquecidos, imaginários: que presenciara tantos encontros


O reverso da história é nada, creia-me

Diálogos imaginários de histórias imaginadas são a profusão nas idas ao mercadinho, nos cinco minutos antes de dormir. A inventividade, a intimidade com os lugares e as pessoas nos lugares com roupa sem roupa e o que elas trocam, mais do que dizem, como se esfregam extremamente perto do que gostariam de mostrar, o que gostariam de ser. Esbarrar o cotovelo em alguém na saída lotada do metrô, realmente às seis, não deixemos falhar. Não deixemos que de manhã, com luz, eu já não me lembre das histórias nem dos cenários, ou do que disseram e principalmente o que ficou forjado como silêncio, necessário ao segredo da retórica lembrada minutos depois, aquilo de deveria ter sido dito, eu não gostaria que sumisse. O teletrompter dos sem atitude oral, a agressividade de ser, no desejo, a junção sincrônica do ser e estar ali bem ali no movimento perfeito número 3 do seu corpo, do seu corpo.

Bem, se conheciam. O tempo bastante pode variar e neles era curto, com memórias seletivas dos momentos mais duros e importantes, aquilo os ligava. Ele sentado na escada à porta, ela que chega pela manhã com o dia nascendo do trabalho, ela que chega de manhã com sandálias de plástico que lhe deixam os pés levemente tortos, ela que já tem as pernas quase arqueadas. Cheia de varizes. Ele, percebam, de perto, belo e com seu rosto farpado, desses que doem posto que deliciosamente doem na junção dum rosto com um peito, dois mamilos. Ela chega - vemos apenas suas pernas, as ligeiras varizes, a barra de um vestido velho, embora muito social, e que ela pára e o vê sentado. Ela estanca. Não posso me lembrar do que dizem, visto que formulei à noite e agora apenas sinto que sinto que havia um erro lá naquela estada, na escada, dele homem, belo, conhecido, amarelo, consubstanciado ao Pai que ela não merecia e anos depois rejeitara; que lhe fizera um filho e ele não mudou nada, parecia o mesmo encostado na cerca esperando as ordens e os cavalos, na terra. Frondosa Ana Vera que ele fez se abrir e suar demais nas coxas enfiando e enfiando escorregadiamente até que ela pensou que era ali, estava ali consigo mesma no seu auto-endosso, been there done that, até que engravidasse ali mesmo após repetidos encontros com um homem que mal articulava palavras, como todos ali que ela presenciava: a miséria é muda, ao seu redor as pessoas, as coisas e os cavalos não tem nome, a miséria é confusa e ruidosa e a todos nós afoga vez por outra.
Ele parecia o mesmo. Quantas vezes Ana Vera, mulher já refletida, se pensava no espelho e calculava a quantidade de creme aplicável à devolução do passado, para que prosseguisse como era a pele que presenciara aqueles e tantos encontros. Seus. No entanto ele era ali o mesmo e era como nem poderia se lembrar, o mais braços, o mais novela, o mais sabia chupar um pedacinho junto da orelha derramando saliva no inescapável. Ela, tivera o filho. Ana Vera tivera o filho e em toda cidade ela tivera uma filha a qual recebera o nome de dezenas de tias e primas e outras filhas mortas antes de saberem até andar ou que foram atropeladas por algum trem ou tiveram meningite, câncer. Dias depois ainda olhava bem diante dos seus olhos a poeira canalizada pela luz do sol, incapaz do sangue ou do amor, da placenta, de si, das moscas voando porque aquele lugar era sujo, sempre sujo e tinham as moscas.
Fugiu, fez as malas, fugiu e foi como um chá abortivo. A vida oportuna, o esconderijo de um nascimento como se jamais houvera sido, muito menos seu, o encanto com as casas, com a cidade, com os novos sons e as vastas oportunidades de acotovelar-se realmente às seis num comboio cheio e isso não é troca é esbarro e os dois e os demais permanecem desconhecidos e sós numa sensação delirante de corpos não reconhecidos que é assim... agradável. A filha se lembrara que na cidade chovia mais em janeiro como antes, passou-lhe rapidamente a imagem da primeira boneca na cerca onde se abraçara ontem veementemente num sanar da dor. De chinelos e vestido chorou inaudível.

Todos esses anos que se passaram, teve, e era de se esperar, de sustentar por pouco o susto e o pavor. Da volta dos ossos ou da boca. Não me recordo.
Era claro, ele rescindia a mordida e suor. O cheiro impregnou e virou limo nas paredes do corredor que levava à casa simples feita de concreto, tudo cinza e húmido, e agradável, com vasos de planta junto da porta e do carpete. Parada como só quem se vê com as peles caindo lentamente, impossível na contenção dos dias dos homens e das cervejas, os peitos e a bunda e o envelhecimento no encontro com o que não, não que isso não existe mais. Parou com susto, dirão que horror safado. Levantemo-nos honrosamente no momento da volta.
- Ana, tô no Rio pra te achar; ele anunciou.

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imagem: Janteloa, flickr.

Um comentário:

Ive Negrini disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
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