domingo, 2 de março de 2008

Clube do Coma #3: o acaso

No desistir da tristeza, os três tipos de liberdade. Entre a morte pequena e a maior. Entre a verdade inevitável que paira sobre a ponte e o crepúsculo alveolar. Pendente. E tudo aquilo que ela não consegue entender: a infância reminiscente. Árvores ocas para um eu efetivo. Se couber, os sonhos.


lembrança (e não vai se explicar)

Não tem exatamente a ver com existir dentro de outra existência. Talvez assistência dentro de uma existência, sim, essa é uma fórmula boba, simples, por isso é compreensível. O que assusta de fato é esse modo como se transcorrem as cenas; elas são contadas, mas há alguém assistindo? Porque às vezes duvido e duvido porque sabemos que isso não é real. Quem vai acreditar que esse grupo de pessoas está de fato reunida, está materialmente se encontrando e formulando pautas que vão desaguar num palco apobreado onde alguns poucos contam tudo de si? Ninguém vai, eu não vou, não acredito.

lembrança
Estranho mesmo ter de explicar o que não faz sentido nisso tudo. Era noite e estávamos num ponto de ônibus na Presidente Vargas, bem do lado duma carrocinha de churrascos e vinha aquela fumaça perfumada de carne e ninguém quer ter os cabelos com cor de carne. Ficamos nos abanando, não nos conhecíamos. Eu estou fora disso, o que se trata é de Tereza e Maria. Eu não me abanava, eu menti, eu estava só olhando as duas. O problema é que são mulheres muito, muito diferentes: quem vai acreditar que se tornaram pessoas próximas. Eu não acredito.

lembrança
Engatando a chave no cadeado do portãozinho, Tereza entrou batendo o pé antes de pisar na terra do corredor que dava pra casa. Ele tava lá deitado, digo, sentado bem no final encostado numa parede de olho fechado. Tereza foi até lá e antes ficou parada uns minutos longos. Nessa cena não dá pra ver a cara de Tereza, vamos voltar. Ela engata a chave no cadeado que prende o portão que é de ferro e alto, alto que não dá pra ver o que tem atrás, e pintado de verde-descascando. A gente vê que é de manhã bem cedo, bem 5 da manhã, quando dá pra ouvir uns pássaros, céu em três tonalidades aparentemente distintas entre si. Vê o vestido de Tereza bem de perto, a estampa que é de geometrias com flores minúsculas azul, preto, cinza no fundo meio branco; a gente vê a cintura de Tereza e a gente vê metade da bunda de Tereza. A gente vê que ela está usando um casaco de não-sei-o-que e a cena desce pro pé batendo, pro pé subindo o degrau e, quanto o portão bate atrás a gente vê lá no fundo o sujeito sentado, parado dum jeito quase que morto. Não se vê também a cara, ele está com uma perna pra cada lado, calça e sandália Havaianas. A gente vê Tereza passando na frente, vê as costas da perna dela, ouve ela vendo o homem e ouve o barulho duma reclamação.Ela vai até ele - já sabíamos que ela usava sandália dessas que imitam couro e tem tiras, meio envernizadas e solado de plástico.

pendente
Era de manhã muito cedo. Foi na noite anterior que eu tinha encontrado Tereza, não vou deixar nunca ela tirar isso, esse dia, aquela noite, não vou. Ela conta histórias com outros nomes, com modificações, mas eu não; avanço pra que isso não aconteça muito. Encontrei com ela a primeira vez,mas nem foi encontro, era só a fumaça. Tereza trabalha agora no telemarketing ativo na hora da madrugada, eu só tava com medo de levar um esporro da minha mãe pela hora, ela tava saindo do turno. Minha vida é besta, queria não ter de cruzá-la com a de Tereza e nem sei por onde começar porque é triste. Entramos no ônibus, no mesmo ônibus e sentamos no mesmo lado, daí a viagem foi com eu sentada na janela. Era de noite com os carros passando, os postes amarelos. Recostei a cabeça (lado direito) e senti a janela tremendo minha testa, coloquei a mão pra apoiar e me abaixei, fiquei pequena do tamanho que sou mesmo. Foi aí que o ônibus virou mais pro lado esquerdo e freou forte pra trás, eu já tinha reparado em Tereza de jeans e blusa com manga comprida, a achei estúpida. Gostei dos cabelos cacheados, imaginei que ela me disse que não era nada daquilo, mas que não tinha tido uma vida necessária pra poder virar o que era. Imaginei que ela me contou que teve um filho e que largou ele lá, que matou ele com uns chás, uns remédios e que isso aconteceu duas vezes. Da primeira vez tinha tido um filho, mas indesejou tanto -isso foi em Resende, acho - que a criança morreu um pouco depois, o que ela não sentiu. Não conto isso pra que tenham raiva de Tereza, ela queria pôr uma continuação no mundo, mas não entendia como nem de que. O ônibus virou muito mais pra direita, freou pra trás, depois foi como que tombando e batendo nas coisas e eu senti uma tristeza, um medo, depois um nada, sabe? Um nada. Me encolhi pequena mesmo porque eu era alta, mas na vida pequena, minha vida só fazia sentido por causa de Tereza; olhavam pra minha cara e viam ela, não era. Queria que não fosse assim, queria ser eu mais suficiente, assim consistente. Senti uma cosia molhada na cintura e se ficasse silêncio todo mundo ia ver que era líquido aminiótico. Era gelado e molhado o líquido, o ferro que entrou pra mim, pra minha cintura, e foi gelando tudo até lá de ser jogada em frente. Rápido, devagar, esbarrando com as coisas da barriga. Era frio e morno, quente, molhado subindo até o peito da dor do medo, da dor do susto que passou e foi, foi então que estraçalhou tudo o mais até que eu morri num avanço simples de sinal.







Ela não conhecia os caminhos que haviam sido preparados para ela. Vida corre trilhos. As tentativas de retroceder e os sofrimentos do que há de vir. Segundos serram direções deixando para trás, debulhos.
(Isabella Kantek, também roubei o corpo monocromático, depois devolvi e peguei a maçã)

10 comentários:

Anônimo disse...

era sangue...

Moacy Cirne disse...

Pois é, limão com gosto de aurora e texto-lembrança, aqui e agora, com sabor de silêncio gelado, "num avanço simples de sinal": o conto que se faz surpresa. Abraços.

rafael disse...

Eu nunca vi Tereza na cara. Mesmo quando ela dava as caras, eu sempre via aquele "eu" que quer ser suficiente e mais consistente.

Mas da última vez,Tereza estava como nunca a havia encontrado antes; estava forte. E não me amendrotei como muitos pensaram (e nem tenho medo de Tereza). Fiquei ali, com resignação (no sentido de quem enfrenta a desgraça) olhando a sangria que saía não sei de quais todos os poros do meu corpo. E não sei se Tereza via, provavelmente não. Tereza não é daquelas que vê, mas daquelas que sente. E que sente somente a si.

Não odeio Tereza. Mesmo porque ela quer pôr uma continuação no mundo, mas não entende como nem de que. E o que me faz ficar perto de Tereza é saber que ela não é Tereza. E sei disso porque eu também não sou herói.

Anônimo disse...

ola, adorei o blog ^^

Isabella Kantek disse...

Mas tá-que-tá, moça!

Isabella Kantek disse...

Tá-que-tá tanto que sumiu demais ...

Unknown disse...

quero agradecer a todos individualmente, mas, enquanto não consigo, queria deixar um apreço coletivo.
um apreço, um afeto e os agradecimentos todos. que é feio, mas preciso tanto dos olhos aqui. que feia confissão.... :/

Isabella Kantek disse...

Ai que "grandiose" ... ;)

Anônimo disse...

Nossa. Bom que só hoje te li.
dias atrás não respiraria depois disso, e eu preciso respirar.

Arranca e devolve o ar. Vácuo momentâneo que deixa marcas na respiração.

Anônimo disse...

reitero: tudo, mas tudo mesmo, até o avanço do sinal, até a pequenez da moça alta; é tudo culpa da boca gostosa e malvada de Tereza.

doido texto. bonito.

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