quarta-feira, 14 de julho de 2010

revisões: a letargia da miséria e "O Morto"

Eu queria tudo diferente... às vezes eu acho que esse cheiro não vai sair de mim e do cabelo. Isso me espanta em você, e acendeu um cigarro, foi pra junto da janela exatamente quando passou um Maverik vermelho escrito vendo raridade. Te espanta porque não precisou comer os ovos empanados do boteco, o moço me dava até um refresco de graça, junto com ovo... ovo cozido empanado, ovo à milanesa e um refresco bem ralo de maracujá. Só queria tirar o cheiro de peão de obra. Não sinto, nunca senti, não gosto de você assim.

É o tipo de assunto sobre o qual não sinto necessidade de falar. Pensava, que sinto vergonha de falar. Justamente deve ser por isso, o sentir vergonha, a gente pensa, falar por que? Noutro lado, há de se avaliar que todas as tristes histórias exigem lucidez, sobriedade e tato para serem contadas já que tudo é repetição, tudo já aconteceu, todos os dramas humanos são repetições infinitas de dramas já ocorridos de modo que apenas para um ele fará sentido e terá força ao ser contado; para o outro é clichê, para o outro é possível alcançar o tédio.

Escrevi algumas vezes sobre a letargia da miséria. Em setembro de 2007 escrevi pela primeira vez sobre essa questão expondo (até muito) sobre as tristes coisas que me aconteceram e que aconteciam - embora aconteçam com muitas pessoas, isso não interessa, aconteceu e foi íntimo, não conheço essas outras pessoas e, mesmo se conhecesse, isso apaga o que te houve? como?
É uma história também claramente queria ser copiada de A Hora da Estrela, mas daí as coisas correram por si mesmas e o enredo terminou sendo muito diferente. Fala sobre uma mulher que trabalha numa papelaria na Saúde. A primeira parte se chama "O morto" (originalmente se chamava "O cavalo morto") e a cena se passa anos depois da papelaria, a personagem está sentada numa poltrona e dialoga com seu companheiro sobre não conseguir esquecer o passado, sobre o quanto lhe custa estar rompida com a letargia da miséria. Acredito que ela, como eu, não ache possível romper completamente. Os gostos, os cheiros, saltam, te assaltam.
Eles relembram que quando ela o conheceu, ela logo viu que ele era casado, ao que ele responde dizendo que ela tinha cara de velha embora contasse 23 anos. Obviamente ali sou eu de alterego. Sinto ainda diversas vezes o cheiro de peão de obra que é um cheiro de concreto molhado e suor rescindido, cerveja de antes de ontem. O amante diz que se espanta dela não ter se esquecido. Certas mortes nos mataram e temos de seguir com o cadáver, isso também é repetitivo na condição humana, devemos carregar nossos mortos porque, como disse Jesus, os mortos devem enterrar seus mortos. Nós, os vivos, carregamos.

Penso hoje, decidindo aqui sobre que disciplinas quero cursar esse semestre na UFRJ, sobre talvez cursar uma disciplina na PUC porque não achei caro e tal, eu conversei aqui com o marido sobre isso, que é interessante. Eu disse a ele que tinha acordado e estava pensando que se não fosse pela delicadeza de Marcelle eu não estaria decidindo essas matérias. Conheci Marcelle na escola, era uma escola particular naquela época em que somos muito novos e costumamos achar que o ideal para existir é fincarmos o pé na certeza de que o mundo é como imaginamos e ninguém deve ou pode fazer nada para mudar isso. Os adolescentes lá eram cruéis nesse sentido. Eles viviam em um mundo onde pobres não existem e eu ali, ora, vamos ignorá-la até que ela deixe de existir, ou, simplesmente ela não existe.
Eu já não existia há algum tempo. Naqueles tempos, vivia perdida em criar histórias, eu vivia das histórias e todas muito românticas, eu lia muito livro Sabrina e eu sonhava com Carlos Eduardo da Maia, vocês calculem, eu tinha fantasias com personagens do Eça de Queirós embora não entendesse completamente Os Maias, entendia o essencial do enredo. Enfim, fui estudar nesse colégio e mal tinha dinheiro pra chegar nele porque era em outra cidade, que dirá tínhamos dinheiro pra que permanecesse lá para as aulas de Espanhol que eram a tarde - porque não havia como voltar para casa, almoçar. O que quero dizer, é que ficava lá sentada criando histórias com cinquenta centavos que era o dinheiro com o qual eu ia almoçar.
Como eu tinha medo de andar pra muito longe da escola, andei por perto e achei um bar desses bares e com cinquenta centavos dava para comprar um ovo empanado; grátis,vinha um copo de refresco ralo, e os homens no bar ficavam me olhando certamente pensando que é que essa porra tá fazendo aqui e porque ela todo dia compra esse ovo. Eu não sabia que era ovo! Eu o vi do lado dos ovos rosa mas eu achei que fosse um salgadinho, imagina um salgadinho! Mas era um ovo empanado, um ovo à milanesa.
Quanto tempo passei com essa dieta? Eu vivia muito nas histórias, criando histórias que me consolavam e eu não lembrava do tempo passando. A Marcelle se tornou minha colega de turma uns dois anos depois, ou três e naquela época eu já não tinha mais bolsa de estudos integral, já era profissional em renegociar os atrasos no pagamento . Naquele período, novamente tínhamos aulas à tarde e eu pensei fodeu, mas aí ela pagava um lanche pra mim., nos acompanhávamos É uma delicadeza que a maioria nem saberia reconhecer quando visse.: ela fazia aquele me comprar um lanche com tamanha falta de compreensão do que fazia e dizia preu pedir o que quisesse porque ela era rica. Ríamos muito. Aquelas tardes foram o que de melhor guardo da escola, nosso afeto. Ela dizia que gostava de me alimentar e eu, ora, eu gosto de comer. Somos amigas ainda porque não poderia ser diferente.

A letargia da miséria acontece nesses longos períodos de fome de tudo, do corpo,, do corpo por dentro, a indignidade consecutiva de não se pertencer, o aprisionamento e, finalmente, a apatia diante dos dias. Houve um episódio em que meu tio - que é um excelente mestre de obras, muito sedutor e que hoje mora numa termas - estava consertando a caixa dágua do condomínio num dia ruim e caiu lá de cima, uns 4 ou 5 metros, quebrou vários dentes. Estava chovendo e ele abriu a porta lá de casa junto com o vento, todo deformado. Disse apenas: tá pegando, que é um bordão até engraçado. Nunca imaginei que o veria dizer aquilo de forma tão séria e trágica. Ele ficou bem, como eu disse, hoje é faz-tudo numa termas, mas usei essa cena, que me impressionou muito, na segunda parte da história Ato contínuo do morto, quando o pai da personagem cai de uma caixa dágua e morre. Mas o pai dela não é meu tio que é uma pessoa pura e alegre, esse personagem era.. isso não sei bem, a materialização da pobreza, o cheiro da pobreza, o cheiro de quem, privado por tantos períodos da integridade de si, cheira de modo permanente ao suor de um mês atrás, urina escorrida entre as pernas e a cimento. A pobreza tem outros cheiros, me lembro de dois, desse e de outro, mas o outro não consigo identificar.

A personagem conhecera seu companheiro enquanto esperava seu amante no Hotel Barão de Teffé. Mas o amante não vem (isto está no trecho O Morto - still life). O amante, Gonçalo, com medo da esposa, manda lá um amigo para avisar à moça e este fica com pena, lhe dá uns trocados pruma Coca e dá o recado-mentira a que fora instruído: ele não fora por causa da apendicite. Depois, por (ainda) pena e fascínio irremediável, esse amigo começa a ir na papelaria da moça (trecho 3 em Ato contínuo do morto), dá desculpa de que foi comprar algo, então já está apaixonado. O amigo, que era como seu irmão, descobre(4) mas aí já não há o que ser feito. Quando ele beija a personagem, a intensidade a faz pensar que ele colocaria a mão dentro do seu sutiã, o que ele não faz, e então ela vai para casa e lhe ataca uma febre, uma doença, pelas imaginações de que a mão deveria ter tocado. No trecho "O morto" a cena do diálogo termina com a personagem sendo seduzida, cotidiana, pelo seu companheiro, ela se abriu ampla como um flamingo. É feliz, então.

Esses são os textos, não coloco aqui pra não ficar uma postagem muito confusa:
O Morto: http://limaoexpresso.blogspot.com/2007/09/o-cavalo-morto.html
O morto (still life): http://limaoexpresso.blogspot.com/2007/09/o-morto-still-life.html
Ato contínuo do morto:
http://limaoexpresso.blogspot.com/2007/09/ato-contnuo-do-morto.html


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