sexta-feira, 3 de outubro de 2008

O meu irmão retardado


visão do paraíso
a primeira vez que vi meu filho eu não vi meu filho, eu não vi nada. na primeira vez eu vi e era ele com uma cabeça quase do tamanho do corpo e os tubos que drenavam a água. acho que não gritei porque nunca grito. mas era lá eu, a primeira vez e era meu filho. que mãe animada! ele não tava morto. eu nunca mais tinha acordado.

O meu irmão retardado
Eu tinha tudo para ser infeliz e aí eu sou infeliz uma vez de cada vez, mais só. Tão só que nem em terceira pessoa iria rir e não só por estar vazio de gente: só pelo excesso dos mortos. Lembro que já fui pequena um dia e que dançava, que queria dançar num balé, não dá pra saber agora, mas dançava e dizia que mãe, eu quero mesmo é um dia dançar todos os dias. Naqueles meses tínhamos um sofá vermelho que não dava pra deitar no calor porque virava uma piscina de suor. Ela dizia que, filha, dançar é bonito, mas você não vai dançar. Eu achava muito engraçado esse desentendimento, eu achava muito engraçado que ninguém entendesse que eu ia dançar e então os anos se passaram e as minhas juntas foram ganhando ângulos cada vez menores até que não dançassem mais.
Queria que o Bruno entendesse, quando come um pão barrado de nada que, se eu como Qualy, isso não me deixa mais acesa, isso não me deixa mais esperta, nem mais tranquila. O Bruno achou que não devíamos nunca estar. O Bruno acha que não, nada deve dançar muito, que são planos engraçados, sonhos muito engraçados, lindos, que a gente é bem feliz, muito, muito feliz só quando as juntas atrofiam e você está obrigado a desistir de dançar, de beber e de trepar. Afinal ele me deu um beijo porque o obriguei. Afinal ele iria embora e eu não o veria mais e me encostaria a boca paternalmente, quase maritalmente, dum modo que nunca mais esqueci. Digo do Bruno porque ele me pensa quem eu não sou: alguém que lhe é diferente, e não sou. Digo, sim: danço com as juntas atrofiadas porque juntos e atrofiados ficarão todos os meus enredos.

Minha casa é infinita de absolutos vazios, e de pobreza e de jornais pulp reality fluminenses. Esses de trem, flores cinza-pedaços-de-outros-papéis-cinzas fluminenses. E a minha casa tem mais arte que a privada do Duchamps e a minha casa tem privadas em muitos cômodos e tem uma tampa de privada em baixo do armário da cozinha, e tem uma área de serviço e tem uma escova de dentes muito velha na fruteira depois que alguém pintou os cabelos com ela. Penso que não é por falta de quem bem me queira, porque não é, porque tenho: eu tinha tudo para ser infeliz e sou infeliz por uma vez de cada vez, cada vez que aqui mais cercada da dor dos outros, da mais só. E a casa cada vez mais suja com um saco de lixo guardado não sei porque, e outros, e um fogão novinho, e um microondas novinho, e uma churrasqueira novinha em que nunca faremos churrascos dum lixo novinho que produzimos tentando não comer as peles dos frangos.
Aqui é muito sujo, a vizinha neopentencostal tem uma voz muito bonita mas, se não se cuidar, vai perdê-la, mas Deus deu o dom e vai cuidar. Deus deu o dom e vai cuidar. Deus me deu o dom de escrever porque queria me cuidar. Aqueles hinos evangélicos enchendo o saco e então eu atinei que iria escrever com o desespero de quem toma chá na Colombo sem nem um real no bolso, com o desespero de quem tem uma privada usada na varanda, com o desespero dum cachorro atropelado correndo no asfalto preto e vazio de noite. Eu escrevo como quem achasse que dá pra ouvir música, como quem pudesse esquecer as mortes que as dores dos outros causaram nos outros, como se o guarda-chuvas do Dahmer pudesse me salvar, como se eu pudesse, entrevada, dançar.

Meu irmão retardado jogou fora aquela minha cadelinha, o meu irmão retardado jogou fora a placenta da mamãe, o meu irmão retardado jogou fora o meu contrato de trabalho, o meu irmão retardado jogou fora uns beijos sem língua que me deu, o meu irmão retardado , esse, jogou fora o fio que ligava o som.

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