sexta-feira, 30 de maio de 2008

drops roubados

porque caboclo escrevedor também merece férias
(kantek em: e não me surpreende o limão estar um pouco "largado")

e... drops roubados
dormindo menta-lizando balinhas
(j. stanzani)

passa o destino

pela menina

dos olhos

do menino
(b. cabelo)


Abatidos pelo fadinho harmonioso e nostálgico dos desterrados, iam todos, até mesmo os brasileiros, se concentrando e caindo em tristeza; mas, de repente, o cavaquinho do Porfiro, acompanhado pelo violão do Firmo, romperam vibrantemente com um chorado baiano. (...) Assim à refulgente luz do trópicos amortece a fresca e doce claridade dos céus da Europa, (...) Jerônimo alheou-se de sua guitarra e ficou com as mãos esquecidas sobre as cordas, todo atento para aquela música estranha, que vinha dentro dele continuar uma revolução começada desde a primeira vez em que lhe bateu em cheio no rosto, como uma bofetada de desafio, a luz deste sol (...)

E viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia, surgir de ombros e braços nus, para dançar. A lua destoldara-se nesse momento, envolvendo-a na sua coma de prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça melhor se acentuavam, cheios de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher.

Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a punha ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda, como se se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em que se não toma pé e nunca se encontra fundo. Depois, como se voltasse à vida, soltava um gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava, miúdo e cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra, tirilando.
(a. de azevedo,
para o meu rapaz e seus olhos de Velho Mundo
- porque sou cabrocha do seu samba, de flor nos cabelos e beijos sem decoro)


e uma questão de riddle

riddle 1
Noun
1. a question, puzzle, or verse phrased so that ingenuity is required to find the answer or meaning
2. a puzzling person or thing

Quanto ao meu comentário na tua publicação anterior, obtive a pista com essa expressão "my knees got weak".
(l. em surtar,
via comentário)


torta de limão diet

ingredientes
● 1 xíc. (chá) de farinha de trigo da Dona Benta
● 3 col. (sopa) de margarina light-luz
● 1/3 do pote de iogurte desnatado (3 colheres de sopa)

para o que vai dentro
2 gemas
6 envelopes de carta de adoçante à base de sacarina
3 col. (sopa) de suco de limão
1 xíc. (chá) de leite desnatado
1 col. (sopa) de amido de milho
1 col. (chá) de vanilla
1 col. (sopa) de raspas de limão expresso
4 claras brancas como a neve


modo de fazer

1.
Misture a farinha de trigo com 2 colheres de margarina light (ou lux). Adicione o iogurte e misture bem segurando o pote embaixo do braço, colher de pau. Leve pela mão à geladeira por 30 minutos.
2. Abra a massa em uma forma redonda de 25 cm de diâmetro, perfure-a com um garfo e leve ao forno preaquecido em temperatura alta, cerca de 10 minutos, até dourar. Deixe esfriar.


Para o recheio

1. Bata as gemas com o adoçante, o suco de limão e o restante da margarina. Acrescente, aos poucos, o leite com a maisena dissolvida e as raspas de limão.
2. Prepare um longo suspiro misturando, delicadamente, as claras em neve de até cobrir o chão com 4 envelopes de adoçante à base de sacarina e suco de limão.
3. Despeje o creme de longos suspiros, talvez agora entrecortados, sobre a massa e leve ao forno baixo por cerca de 30 minutos.


informações poéticas

proteínas: 4,5 g
carboidratos: 13,7 g
gordura: 4,1 g
colesterol: 59,4 mg
fibras: 3,8 g
culpa: zero

terça-feira, 27 de maio de 2008

Minha foto favorita de Renata M. com Renata M.

(16 anos, ou 15 e 17. vivo assim bem feliz do lado delas: amendoim, cerveja e esmalte vermelho)

o início

você não é do meu colégio, a gente não se conheceu em festa de ninguém e nem nos vimos na tv.

meio no meio
aqui em casa, onde você perdeu seu nome e ganhou seu apelido de Turano.

- minha festa, você pegando o garoto que eu gostava e depois chorando me pedindo perdão. depois a gente aqui em casa e você e a Mari fritando salgadinho.
a gente na porta aquele show no Mauá, geral barrado e eu só sabia falar - Moooço eu vim do Espírito Santo! Três por cinco é a nossa frase..

uma música pra trilha:
enquanto for... um berço meu

enquanto for... um terço meu
serás vida... bem vinda
serás viva... bem viva


e uns pedaços do meio
vamos dançar macarena?
(...)
vamos pular amarelinha?
vamos ao Méier?

sábado, 24 de maio de 2008

Pequeno escrito com introdução do envio para Isabella Kantek: é sobre amor e é besta

janeiro 08

por enquanto então te mando esse rascunho aqui. sonhei com isso ontem de tarde e queria só descrever pra guardar, já que lembrei. não tem pretensões e acho que você vai achar minimamente ridículo. (queria não ter medo do ridículo). seria sobre alguém, aquela coisa de sempre, o amor da vida, a pessoa da vida, o lugar da vida... o estar calmo depois da chegada e não querer mais ir, querer ficar, cotidianizar, coisa assim. fica bem, querida amiga.

Será que esse moço que estava para viajar era eu?

sem título
nós sentados numa calçada, acho que numa cadeira de praia na calçada e estava calor, um que era abafado. eu com um pedaço de papel branco - cortado torto dalgum lugar - escrito em caneta vermelha umas palavras meio poemas (bestas, poucas) e fumando, e segurando o cigarro
em muitas posições - do meio pro fim - como se fosse detalhe importante um desenho com a fumaça e, foi canastrice, eu soprava a fumaça. às vezes o cigarro caía, às vezes quase, e escrevia e ele do lado. na calçada, abafado (era o Rio?) era de noite? era de tardinha? noite; definitivamente noite, de tardinha: Rio da Gamboa ao Estácio. ele tentava pegar o papel (ou o cigarro) e eu desviava, tirava o papel, dava, tirava o cigarro e ria, ria tão muito...! daí ele me disse que ia pruma viagem: eu muxoxo rápido pro superado. o cigarro no fim. entreguei o papel (poema que não sei s´ele leu). mas faz amor comigo antes...?, olho parado, depois um por favor... alongados os erres. ele respondeu que sobre que não podia, que não ia dar tempo (mas só um pouquinho...), e o atraso? por favor... love me one time, baby / my knees got weak, de perto, abafado, calçada, a noite (no Rio?), cadeira de praia com ferrugem, cigarro apagado faz tempo. e ele sorriu num tudo ficou nublado e a carne ou a pele molhando, derretendo pelos mais diversos outros motivos, redondos, morenos. eu nem quis ir embora nessa vez, só porque não precisava mais, era você e um lugar que me sabia e que me era a calma. "faço" a mão dos dedos afagando o rosto das pernas, se apertavam as coxas, a saia nos joelhos, e quereriam. beijo de fala. "faço minha bonequinha... faço".

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Escrito muito delirante para o 1º ano de Obvious

para Benjamin e A.P.
porque já não me posso apartar


rodas dentadas
O número ao certo, quando se quer ter, escapa. Além do mais, não são coisas da lógica. Tenho acordado todos os dias e em cada um deles – poucos – vejo os mesmos gostos, os mesmos aportes, os mesmos olhos e mastigam e eu vejo bem em frente a minha janela, engravidam, montam um armário e ele cai bem de madrugada. Os vejo desde então, nunca os conheci, nunca, não os conheço e o mesmo comigo, os toco no que está ao alcance da minha crueldade, porque os descrevo. Recomeço a contar olhando minhas letras. Deviam ser delicadas, não são.

De longe não há o caos, os eventos giram iguais umas rodas dentadas, e se aproximam, e nos aproximam, e nos apertam. Assim, de muito perto é possível que eu não compreenda, nem ninguém mais. Na verdade, as pessoas que me são próximas me dizem que eu devia parar, dizem que levo isso como uma tortura, sinto que dia menos dia eles vão dizer que devo parar, que levo isso como tortura. As rodas dentadas são isso: laço. Escrevo e lá estão três ou quatro parágrafos do que antes eu fiz só angústia. Não são angústia, eu os fiz.. angústia, e dor, e parto. Tenho medo que me mandem embora, tenho medo que descubram que me dói, tenho medo que descubram que gosto da dor; a dor de trinta mil olhos me olhando subir em um tablado mal-vestida de estudante a dizer as tais linhas de puro embuste.


queria que escrever fosse ofício
Escrevo com a dificuldade que se tem pra lavar uma calça jeans à mão num tanque de fibra, que parece plástico. Faço porque passo pelos vãos da porta e sou constantemente estranha, isso quando vista, não sou vista quando passo pelos vãos da porta e fica uma luz posicionada bem na diagonal dos passos que não dou, não se percebem. (Teve um tempo em que eu achei que podia explicar, teve até quando eu achei que era escolha, que era ofício de escolha. Mas é que esse meu escrever é missionário, me convenceram disso, catolicismo romano, e acreditei que, em dezenas de passos que dou, meia dúzia foi por praxe divina. [e fica sem-fim o parêntese]

Eu queria que escrever fosse ofício, mas eu escrevo e não escolhi o horário.

O número certo, quando se quer, escapa. Acho que também nunca fui boa em contar, é disperso. Disperso. Mas imagino que debrucei na janela e imaginei tão forte que... e alta – se bem que queda não é medo, atrai. Me debruço em três ou quatro parágrafos que me saem, escolho os assuntos, estudo os assuntos, descubro que amo as imagens, percebo que me falta mais som, finalmente está claro que a poesia não necessita significar, poesia tem de ser; e é. Foi assim que aconteceu: o caos são rodas dentadas que giram e nos encontram, nos apertam. Dei um bom dia largo ao vizinho, não estreitou a resposta, vim aqui em casa escrever para o outro lado do oceano, meus afetos que me tratam por tu. Eles me poem sob trinta mil pares de olhos. Eles olham para mim e penso suportável. Escrevo pelas razões ridículas, roubo idéias dos outros, assisto filmes criminosamente, desejo lamber a gravura do Picasso, venho aqui relatar tudo. Venho aqui - faz um ano e semanas interrompidas, quase mudas – porque agora o sentido de não fazer some, é pelas incapacidades de deixar. Quis deles, para todos os inícios, que fossem meus amantes d'além-mar, então eles foram. Um já quis me matar, o outro pagar na saída.


epílogo
We accept you, one of us, one of us, daí vou me colocar feito admiração na janela. Quero um cado mais de tempo, quero que rondem mais palavras todas vestidas de jazz, que é preu não usar vírgula, que é pra descansar no parapeito feito namoradeira, suspirar, inacreditar... me deixar toda extensa, me entregar duramente prum olhar mais demorado.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

O Clube do Coma #9 apresenta pouco Maria



Grace (...)

And when she walks on the street
You can hear the strings
Grace(...)
(Grace)


Maria tem delírios de deus e escorre tantos ventos tortos, tantas visões nubladas do que acha que é a si ou aos outros que estou indo sem vontade encontrá-la. se encheu de tanta tristeza que só existe nos abandonados. Maria quase esquecida em alguma bancada mas, como é que ela se lembra disso? como eu queria não saber... como eu queria...
a mãe descobriu que estava grávida quando foi limpar o piso da cozinha com ácido sulfúrico e parou de respirar, isso já tinham quatro meses. Maria vingou como doença de velho isso ninguém entendia. devia se chamar Sidarta, devia... ela saiu de dentro dos ovários, das trompas, já pronta feito o rabos dos cavalos que viram violino. eles tentaram esquecê-la e mal compreendo o que deu errado; de repente haviam mil e duzentos olhos olhando o casal que nem queriam nada, principalmente a mãe, o pai não teve de carregar nada em lugar nenhum do corpo, ignorou como quando ninguém reparou que quase pararam de vender Coca em garrafa de vidro. iam caminhando para longe e, de repente, haviam aqueles mil duzentos e trinta olhos que, em seguida, ela estava embrulhada naqueles panos pesados, bons, quentes. levaram pra casa porque era assim que dizia no livro: não pecarás contra o Senhor Teu Deus.

o dia depois do acidente se seguiu ao dia do acidente, e talvez outro. ela não se lembrava do que tinha visto, sabia: MULHER É ESQUARTEJADA EM ACIDENTE DE ÔNIBUS; mas o que? como? viu que a mulher morreu, não sabe de que, não sabe por que. talvez ela não tivesse morrido não. Maria achava que tinha inventado, foi por isso que não contou a ninguém. Maria também não fala, tem medo de mentir, e, como não sabe nem, inventa.

fico parada, fico sentada entre as minhas calmas e ela tem delírios de Deus, e escorrem ventos tortos.

esperadamente percebo que ela nunca me toca, ela só me toca pelas mãos de Tereza... não queria hoje falar de Tereza, nem pensar no nome com z. devia ir lá ver você, Maria da Glória, devia tentar parar de acreditar nas suas boas intenções porque acho que elas não existem mesmo, acho que a sua doçura é muito cruel. você é tão cheia... tão cheia... quando ela fala é música, significação, e ela se move em cantiga de escárnio, e ela espirra existências, e ela é outras, outros, e ela nunca coube no papel. seus pés é que escorrem, ela se infiltra pelas ruas, pelos celulares das pessoas, ela dança e me deixa feliz feito um poodle amestrado. ela fica sozinha pra sempre por não comunicar a lógica. Nunca, nunca. ela toca com as mãos frias, não me toca Maria. Maria ama os corpos, ela descobre que os corpos mastigam, ela passa horas nos cabelos dos outros, nos rins dos outros. ela sabe ver. descreve. ela só sabe ver. só acho que ela queria era parar de ver. descansar e dormir, morrer... ela não sabe, ela gosta dos homens, das mulheres, Maria se esfrega nas paredes pra tinta...
assim foi que a mulher morreu, cortada no meio e ela segurou a mão da outra porque a outra queria juntar a mulher novamente. como? sangrava muito, muito... os pés ficaram muito, muito, muito vermelhos. como ela queria reter! ela ia esquecendo... igual sonho. o dia todo era igual sonho que você acorda no meio e não sabe bem se...

o ônibus, a batida, a morte, a esquartejada; saiu tudo no jornal. estava lá eu numas fotos e foi tão triste... eu não queria ler esses jornais, mas li. foi tão triste...
Maria seguiu Tereza porque não conseguia mais soltar da sua mão, foram para o hospital e não largava o pulso - não era a mão, era o pulso, e o jornal fotografou, ela não soltava o pulso. Maria seguiu Tereza. Maria seguiu Tereza. Maria seguiu Tereza. Maria não largava os pulsos mais de Tereza porque ninguém se importava, ninguém. Acabou.





Era época de tangerinas: (sabemos que a Rua Fonte da Saudade não cabe, a Lagoa não cabe em Santa Tereza, nem em Santo Cristo, não sei porque agora elas estão juntas. Maria da Glória é infértil e é queda, é como cair, é um cair monótono e demora a chegar o fundo, você pensa em tantas coisas no caminho... Não entendo).



nos meus sonhos, eu afogava meus arrependimentos
mas meus arrependimentos...
eles aprenderam a nadar
(untill the end of the world)

terça-feira, 13 de maio de 2008

13, maio, sec XIX


Para dar uma idéia exata e geral do Rio de Janeiro, precisei acrescentar à vista apanhada de frente, do lado do mar, uma segunda vista de perfil, que mostra a extensão da cidade do lado da terra. (J. Baptiste Debret)


Última vista do Largo do Palácio: D. Felicidade, o preto liberto Guilherme e o moleque Silvério. Ao fundo, a Igreja da Sé
para Ana, Isabelle e J. Roberto . só porque resolvemos estar lá...
Era certo deles não terem esbarrado por aí, nalgum lugar: em 1853 Debret já estava morto, mas a província havia mudado bem pouco desde a última prancha que ele esboçou. Lembro que o Largo do Palácio ainda não havia sido aterrado e, onde agora há uma passagem subterrânea para os ônibus que saem à toda velocidade do terminal rodoviário, era simplesmente mar, eram os barcos pequenos atracando nas escadinhas junto ao luxuoso chafariz e os negros iam descarregando os mais diferentes tipos de produtos, sempre com cestos na cabeça e sem camisas. Era ali no parapeito do cais que muitos homens se sentavam no final da tarde pra um refresco. Dona Felicidade Maria vendeu metade da banca de doces em menos de meia hora correndo de um lado para o outro afim de exterminar com a outra metade. Ajudei Silvério a preparar a moringa com água e lá partiu ele pontuado pelos gritos de "ó moleque!": é que sentiam sede, não sei se por conta do açúcar ou por conta da pimenta do jantar que era excessiva. Na dúvida, despedi-me, de Felicidade, de Silvério e dos pretos barbeiros que, àquela hora, repousavam coçando a nuca com uma pena.

Fui mesmo à pé, tomando cuidado com os cavalos dos coches porque tenho medo de um atropelamento, sempre tive. A Catedral ainda não sonhava com a reforma e, muito menos, falavam em redecorar o Largo e a Rua Direita de forma que ficasse como era na época da vinda da Corte Portuguesa. Penso hoje que podia ter dito baixo isso a um, a dois, ou até três pessoas da mais severa confiança que conheci naqueles andares infinitos, oitocentistas, pelo que ia ser hoje uma cidade cinza-verde e fuligem azul-céu-claro. A missa ia alta quando desisti de refletir só, parada, e embrenhei ali pela Direita, digo, Primeiro de Março. Trinta anos depois, Felicidade morria por complicações no fígado lá na Santa Casa de Misericórdia; deixava Silvério livre em testamento, uma quantia ao seu companheiro, o preto livre Guilherme e outra ainda maior para seu neto, agora sem pai, mãe, nem avó, nem escravos - as duas cozinheiras velhas da casinha foram também liquidadas.

Felicidade Maria antigamente atendia só por Felicidade Mina, dizia que era de lá, da Costa da Mina mas, ao contrário da maioria de nós e até de mim - confessores de fila -, dizia sempre tão pouco sobre... me restou nesses anos todos ficar imaginando. Já tinha ouvido certa vez, numa dessas manhãs em que lavavam roupas no chafariz central lotado que ela tinha chegado nova, mas nova mesmo, à cidade, mais pro sertão e, já na fazenda dum certo Pedro, engravidou. Tempos depois engravidou novamente e, não posso atinar com detalhes como foi, saiu de lá com duas meninas: uma no colo e a outra arrastada pela mão que não queria ir, e ainda descalça, por conta da madrinha que ficava. A conta total havia ficado em quase dois contos de réis: ela, a filha maior e a recém nascida, que ia de graça mesmo, por brinde. Não sei que Felicidade via aqui, nem sei o que mais havia pra ver depois duma travessia Atlântica, assaltada quase que pessoalmente pelo Diabo, como que arrancar uma planta pela raiz. E isso digo sem receio de soar buscando palavras mais sentimentais. Uma planta ceifada, meu Deus, Felicidade, os homens de negócios que tinham todas as cores, o Diabo, e como foi que ainda as forças deram quando o tumbeiro foi amarrado ali no cais, lá no Porto? Tumbeiro era o nome desses navios, por conta dos mortos que permaneciam às vezes ali espremidos, tocados escondidos nas frestas. O que foi que viu quando saiu de lá do porão e de repente viu tudo claro? E de repente viu tanta gente correndo dum lado ao outro pontuando os gritos de "ó moleque!". E aqueles morros verdes, mais verdes que toda uma existência de matos, de matas, por todos os lados. O que será que ela viu? Porque ando pelas pedras que sei que ela pisou e me falta a memória do que terá sido. Pouco depois a criança mais nova morreu, muito antes ela já não se chamava mais Felicidade Mina, nome dado pelos administradores do certo Pedro; tinha escolhido que ia ser Felicidade Maria, e Maria da Conceição porque no ano de 53 o dogma da imaculada concepção da Virgem Maria havia sido alardeado com festa pelas ruas próximas à igreja da Glória. Eram tanto mais católicos...

Felicidade Maria da Conceição desceu da Rua Princeza dos Cajueiros onde tinha ido visitar alguns aparentados, como considerava com toda fé aquelas pessoas, e, ainda com o céu claro, fora procurar Bernardino Ferreira, por quem tinha confiança e para quem, ainda na presença de outros, começou a ditar seu testamento à Rua Primeiro de Março número 4. Não sabia ler, tampouco escrever, achou bonitas as letras e foi como se cumprissem o que devia ter cumprido. O túmulo ia ser de mármore e foi no cemitério de São João Batista. Paulina morreu anos antes, do pulmão, a outra filha, a que chorara descalça de saudades da madrinha quando saiu da fazenda, ou teria sido um sítio? Sempre imagino que saíram de Jacarépagua, ninguém, exceto eu, pensava que quarenta minutos dali dariam de cara com uma réplica iluminada da Estátua da Liberdade que enfiaram em frente ao New York City Center. Paulina foi acompanhar o marido, o Silvares. Felicidade cochichou num canto que era a vontade de Deus tudo, tudo, mas nunca acreditei.

De qualquer forma não conseguia tirar os olhos dali, da Catedral onde ela havia passado num sinal da cruz rápido feito com os dedos no peito. E se mais alguém soubesse? A missa terminou e tirei a câmera fotográfica novamente de dentro da bolsa, nem que fosse pela última vez. Nas duas polegadas e meia estava a carta que alforriou minha Felicidade mediante a tanto dinheiro que de onde foi que'la tirou? Pedro Blanche pediu ao vizinho que assinasse (problemas na vista), que as autoridades Imperiais reconhecem agora ali uma mulher que se auto governaria como se de ventre livre tivesse saído, como se a tivessem sacado dum outro útero além daquele africano, outro. Ela saiu de lá sem olhar para mais nada, eu sei. Continuou nos seus doces, separou num bornalzinho o dinheiro do Guilherme, aquele seu companheiro na idade. Fez outros rogos à Deus e dormiu pela exaustão apenas, se não ficaria acordada, se não me diria tudo. Nunca quis ver a cidade que ela viu, sentei no banco, na calçada, na Ipanema e escrevi isso no bloco. A anotar era só isso. Uns meses atrás, falamos ao telefone tempo o suficiente para sentir depois as orelhas doendo terrivelmente: falar da cidade. Nunca soube por onde começar as memórias do que não sei, do que não quis lembrar, de onde só quis ficar deitada no chão, de pedras de qualquer tamanho como que esperando algum passo que me contasse as histórias que não vivi. Foi tudo muito demorado, foi disso tudo os meus atrasos de entrega das invenção. Mentir nunca é rápido. Nem por isso menti, nesses dez textos, bem.

--
texto publicado em Obvious para a série de crônicas sobre cidades; neste, Rio de Janeiro - a última crônica - e documentação extraída lá do Arquivo Nacional pelo grupo de pesquisa do Dep. de História - do qual, honradamente, faço parte. as lacunas da fonte escrita completada pela fonte imaginada por mim, jamais inventada.
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